Trombose e Gestação

Toda gestante precisa pesquisar trombofilias?

Esta é uma pergunta bastante comum no consultório do Hematologista, uma vez que a investigação de trombofilias hereditárias em vários cenários relacionados à gestação tem se tornado prática cada vez mais frequente. A relação entre a gestação e a coagulação é discutida, geralmante, em dois eixos: um eixo relacionado ao risco de trombose na gestação e outro risco relacionado a complicações na gestação: falha de implantação do embrião em fertilização in vitro, abortos, óbitos fetais, pré-eclâmpsia, restrição de crescimento intrauterino entre outros.

Imagem Trombose e Gestação

Gravidez e o risco de trombose

O corpo da mulher sofre uma série de adaptações durante a gestação, com o objetivo de prepará-lo para o crescimento do feto e o parto. Entre essas modificações estão a produção de hormônios sexuais que levam ao aumento de determinadas proteínas da cascata de coagulação, e a uma maior lentidão no fluxo venoso, resultando num maior risco de trombose. A magnitude desse aumento de risco é da ordem de 5 vezes, ou seja, uma mulher grávida tem 5 vezes mais risco de ter uma trombose do que uma mulher não grávida, aumento que pode chegar a 10 vezes no puerpério (o período entre o parto e seis semanas após a gestação). Apesar do aumento desse risco entre mulheres grávidas e não grávidas, o risco absoluto de uma trombose venosa na gestação é muito baixo, cerca de 1 trombose para 1000 gestações.

Além do risco aumentado de trombose pela própria gestação, outros fatores podem contribuir para um risco ainda maior de trombose nesse período, como obesidade, tabagismo, hiperêmese, desidratação, história familiar de trombose e história prévia de trombose não provocada (não associada a fatores de risco) ou associada ao uso de contraceptivos hormonais. Além desses, as trombofilias hereditárias são um fator de risco para trombose na gestação.

Apesar do aumento do risco, nem todas as trombofilias hereditárias se comportam da mesma maneira. A homozigose (quando a mulher tem tanto a cópia do gene do pai, quanto da mãe com a mutação) para o fator V de Leiden, a deficiência de antitrombina III e a mutação do gene da protrombina em combinação com a mutação do fator V de Leiden (ambos em heterozigose, ou seja, com só uma das cópias do gene–a do pai ou a da mãe–mutados) são as únicas trombofilias que indicam um risco aumentado de ocorrência de trombose, podendo chegar a 1-5 tromboses para cada 100 gestações.

Esse aumento de risco, porém, se manifesta quando familiares de primeiro-grau (irmãos, filhos ou pais) tiveram ou trombose ou quando a própria pessoa teve uma trombose anterior. Isso é explicado pela característica genética envolvida na transmissão da trombofilia, o que obriga pais ou irmãos a terem o gene, e, portanto, a propensão para a trombose.

Desta maneira, a sociedade americana de ginecologia e obstetrícia recomenda que somente mulheres com história familiar ou pessoal de trombose venosa devem realizar os exames para pesquisa de trombofilia hereditária com o objetivo de identificar e prevenir um episódio de trombose durante a gestação.

Trombofilias e o risco de complicações na gravidez

A gravidez é um período único na vida da mulher e quaisquer complicações que venham a acontecer nesse período tem um impacto devastador sobre a vida da gestante e de sua família. Mais dramático é quando esta situação culmina na perda de um bebê ou na incapacidade de engravidar. Por essas razões, as questões de infertilidade e perdas gestacionais (abortos e óbitos fetais) tem sido um campo de intensa investigação e pesquisa nos últimos anos.

Na década de 1990, quando as primeiras trombofilias hereditárias foram descritas, teve-se a impressão de que mulheres de famílias portadoras de mutações nos genes relacionados às trombofilias apresentavam aborto e óbito fetal com maior frequência. Essa observação levou à suspeita de que as trombofilias hereditárias poderiam estar relacionadas a um risco aumentado de aborto e óbito fetal.

É importante entender que, do ponto de vista médico e científico, a confirmação desse tipo de observação requer o acompanhamento de muitas mulheres com trombofilia hereditária de diversos locais, famílias, classes sociais, idades etc. com mulheres sem trombofilia, também de diversos locais, famílias, classes sociais, idades etc. Isso é necessário pois, quando fazemos conclusões a partir da observação de um grupo muito pequeno, podem haver outras características que não estamos observando e/ou medindo que são as reais responsáveis pelas diferenças observadas. Por exemplo: suponhamos que a família em questão tenha todas as suas mulheres vivendo numa cidade próxima a uma usina nuclear, ou tenha alguma outra doença genética que não foi diagnosticada. Torna-se impossível, nessa situação, saber se a maior incidência de complicações na gravidez nessas mulheres é fruto da trombofilia, da exposição à radiação ou dessa doença genética não diagnosticada. Um exemplo muito ilustrativo dessa situação é o fato de que, por muitos anos, o consumo de café foi associado ao aumento de risco de câncer de pulmão: como não se sabia que o câncer de pulmão estava associado ao cigarro e pessoas que fumam bastante tendem a consumir muito café, uma associação inadequada entre café e risco de câncer de pulmão foi feita, e somente estudos com um grande número de pessoas, avaliando exposição a múltiplos fatores (incluindo cigarro e café), foram capazes de confirmar que o responsável era o cigarro, e não o café.

A relação entre trombofilias hereditárias e complicações na gestação caminhou, na história da medicina, da mesma maneira que o câncer de pulmão e café: diversos estudos envolvendo um grande número de mulheres não foram capazes de comprovar uma relação entre trombofilias hereditárias e o aumento de risco de complicações na gravidez. A ausência dessa relação é a base de uma recomendação da Sociedade Americana de Medicina Materno Fetal de: “Não realizar pesquisa de trombofilia hereditária para avaliação de mulheres com história de perdas gestacionais, restrição de crescimento intrauterino, pré-eclâmpsia e descolamento de placenta” (https://www.choosingwisely.org/societies/society-for-maternal-fetal-medicine/).

Essa recomendação, porém, não se aplica à síndrome do anticorpo antifosfolípide (SAAF) que não é uma trombofilia hereditária (de origem genética). A SAAF se caracteriza por diversas possíveis complicações obstétricas, principalmente complicações que ocorrem mais tardiamente na gestação: parto prematuro (antes de 34 semanas) relacionado à pré-eclâmpsia, eclâmpsia ou outras evidências de insuficiência placentária, óbito de um feto morfologicamente normal (sem mal formações) acima de 10 semanas de gestação e menos frequentemente complicações mais precoces, definidas como 3 ou mais abortos espontâneos em gestações consecutivas antes de 10 semanas de gestação, excluídas alterações genéticas de ambos os pais e doenças do feto. Essas são as situações em que SAAF deveria ser investigada.

O critério de 3 abortos com menos de 10 semanas de gestação frequentemente levanta dúvidas: por que 3 abortos? Por que não investigar ou firmar o diagnóstico logo no primeiro aborto?

De fato, aguardar três abortos consecutivos para se estabelecer este diagnóstico e iniciar um tratamento adequado parece algo que somente prolonga o sofrimento da mulher e do casal de maneira desnecessária. A existência desse critério, no entanto, tem algumas razões:

  1. Cerca de 20-30% das gestações terminam em aborto, sendo 80% desses abortos no primeiro trimestre. Muitas vezes o aborto é tão precoce que algumas mulheres não chegam sequer a saber que estão grávidas, sendo este breve período de gestação percebido apenas como atraso menstrual. Ou seja, por mais devastadores que eles sejam, os abortos de primeiro trimestre (nas primeiras 12 semanas de gestação) são frequentes (algo entre 1 em cada 3-5 gestações)
  2. A causa mais comum de abortos no primeiro trimestre são anormalidades cromossômicas do feto. De fato, 70% dos abortos com menos de 20 semanas de gestação estão associados com esse tipo de alteração, que envolve a perda ou ganho de material genético (DNA), em situações muitas vezes incompatíveis com a vida. Essas alterações cromossômicas habitualmente só ocorrem no feto (não estão presentes nem no pai e nem na mãe), muitas vezes não resultam em malformações do feto e frequentemente não são detectadas por técnicas convencionais (cariótipo), requerendo o uso de técnicas muito sofisticadas e pouco disponíveis, como microarray. Ou seja, menos de uma a cada três perdas gestacionais no início da gestação está relacionada a causas não genéticas.
  3. Como discutido em maior detalhe na seção sobre SAAF fora da gravidez, a prevalência de um exame positivo para um dos anticorpos antifosfolípides na população geral é de 10%, sendo que somente 1% das pessoas apresenta uma positividade persistente, o que é mandatório, mas não suficiente para o diagnóstico de SAAF. Ou seja, no exame feito num único momento, 90% das pessoas com teste positivo não terão positividade persistente, e mesmo diante da persistência da positividade, a maioria das pessoas não apresentará manifestação clínica.
  4. Finalmente, como discutirei a seguir, o uso da enoxaparina, o anticoagulante necessário para o tratamento da SAAF, tem riscos e seu uso em uma situação em que não há absoluta certeza dos benefícios pode trazer mais danos do que ganhos.

Com relação a outras situações, como infertilidade ou dificuldade de implantação de embriões após fertilização in vitro não foi documentada cientificamente alguma correlação com trombofilias hereditárias. A falta de relação entre esses eventos pode ser ilustrada por um grande estudo com mais de 17.000 mil mulheres submetidas à fertilização in vitro, das quais cerca de 500 eram portadoras de trombofilia e não receberam medicações anticoagulantes. Essas mulheres tiveram a mesma taxa de sucesso na implantação do embrião do que as mulheres que não tinham trombofilia ou que tinham trombofilia hereditária e receberam enoxaparina.

Em resumo, a pesquisa de trombofilias hereditárias em gestantes deve ser realizada em mulheres com algum parente de primeiro grau com trombose venosa, ou que tenham tido, elas mesmas, trombose venosa não provocada. A SAAF, por sua vez, deve ser pesquisada em mulheres que tenham apresentado um óbito fetal em gestação anterior entre a 10a e 34a semana de gestação, relacionado a pré-eclâmpsia ou eclampsia ou com outras evidências de insuficiência placentária.

Quando uma gestante precisa fazer uso de anticoagulantes?

Primeiramente é importante destacar que existe uma série de restrições com relação ao uso de anticoagulantes na gestação. Nenhum dos anticoagulantes que podem ser utilizados por via oral é seguro na gestação. A varfarina está associada com malformações no feto quando utilizada no primeiro trimestre e os anticoagulantes orais diretos (DOACs) não foram suficientemente testados para se avaliar sua segurança durante a gravidez.

Dessa maneira, os anticoagulantes que podem ser utilizados na gestação são os injetáveis, sendo a enoxaparina, por não necessitar de monitorização de dose, a mais utilizada. O uso desse medicamento, porém, em qualquer situação e em particular na gestante, não é isento de riscos.

O uso de todo anticoagulante carrega consigo um risco de sangramento, dado que seu mecanismo de ação envolve uma redução da atividade da cascata de coagulação. Esse aumento de risco de sangramento pode ter repercussão em vários momentos da gestação. Por exemplo: se a gestante está utilizando enoxaparina e entra em trabalho de parto pouco tempo após sua aplicação, não poderá receber raquianestesia ou anestesia peridural (pelo risco de sangramento no canal medular), restando-lhe realizar o parto por via vaginal sem anestesia ou por cesariana, mas com anestesia geral. Outra potencial complicação associada ao aumento de risco de sangramento durante a gestação é a plaquetopenia induzida por heparina. Esta complicação ocorre quando o sistema imune passa a produzir anticorpos contra a enoxaparina e esses anticorpos se ligam às plaquetas, provocando sua destruição. As contagens de plaquetas diminuem, podendo haver sangramento e tromboses em alguns casos. Esta complicação ocorre em até 2% das gestantes recebendo enoxaparina conforme observado em alguns estudos clínicos. Outras complicações menos graves relacionadas ao uso diário das aplicações de enoxaparina durante as 40 semanas da gestação estão a dor relacionada às aplicações e as alterações da pele nos locais de aplicação, que pode ficar roxa ou avermelhada, frequentemente com coceira no local de aplicação.

Levando-se em consideração todos os riscos, é prudente que o uso da enoxaparina só seja recomendado em situações associadas a um elevado risco de trombose ou de complicações na gestação. Embora essa avaliação tenha que ser feita caso a caso, considerando-se as características individuais de cada gestante, em linhas gerais recomenda-se o uso de enoxaparina durante ou nas primeiras 6 semanas após a gestação ou em ambos os períodos nas gestantes com antecedente de trombose venosa, com antecedente de trombofilias hereditárias em mulheres com história familiar de trombose ou em mulheres com homozigose para a mutação fator V de Leiden ou no gene da protrombina e nas gestantes com diagnóstico de síndrome de anticorpo antifosfolípide.

Uma situação específica em que a enoxparina é recomendada na fertilização in vitro é numa complicação da estimulação dos ovários para coleta de óvulos chamada de hiperestimulação ovariana.

Mas não se usa enoxaparina para se evitar um aborto em mulheres com ou sem trombofilias e abortos de repetição ou infertilidade?

Situações relacionadas com uma dificuldade da mulher de iniciar ou manter uma gestação são fontes de grande sofrimento para a mulher e para o casal. A comunidade médica e científica é sensível a esse sofrimento e busca, há muitos anos, estratégias para entender as razões desse fenômeno e combatê-lo.

Muitas foram as intervenções propostas e investigadas para minimizar essas dificuldades, sendo uma delas o uso de anticoagulantes durante a gestação. Essa abordagem parecia fazer sentido, principalmente diante das observações dos impactos da síndrome do anticorpo antifosfolípide na gestação e das primeiras observações de um possível aumento das perdas gestacionais relacionadas às trombofilias hereditárias que, como já explicado, foram descartadas por estudos maiores.

Infelizmente, porém, diversos estudos realizados dentro do mais alto padrão requerido pelo método científico (estudos clínicos randomizados) não mostraram aumento do número de gestações sem complicações pelos anticoagulantes em comparação com injeções de placebo (substância sem efeito) e ajudaram a entender o por quê da impressão, entre quem recomenda o uso de anticoagulantes para gestantes, de que a enoxaparina traz resultados positivos.

Entre as mulheres que participaram do estudo, todas com 3 ou mais abortos anteriores, a taxa de sucesso de uma quarta gestação, seja com uso de anticoagulantes, seja com uso de placebo, foi da ordem de 50-70%. Isso quer dizer que, apesar do sofrimento e da angústia associados ao tortuoso caminho das dificuldades de início e manutenção de uma gestação, independente do tratamento instituído, com o tempo, uma gravidez que gera um filho saudável acontece em ½ a ¾ das mulheres com abortos recorrentes.

Quando consideramos a falta de benefício e os riscos envolvidos no uso desse tipo de medicação, a grande parte das sociedades internacionais, tanto de Hematologia como de Ginecologia e Obstetrícia, não recomenda o uso de enoxaparina nessas situações.