Hiperferritinemia

Mas afinal, o que é a ferritina e para que ela serve?

A ferritina é uma proteína produzida pelo fígado, especializada no armazenamento de ferro. No nosso organismo, o ferro não pode existir na forma livre, isto é, sem estar ligado a alguma proteína. Isso ocorre porque na sua forma livre o ferro leva à produção de formas tóxicas de oxigênio (popularmente chamadas de radicais livres).

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Assim, nosso organismo conta com várias proteínas para impedir que o ferro circule no sangue na sua forma livre. A transferrina, por exemplo, é a proteína que se liga ao ferro na circulação sanguínea, após este ser absorvido pelo intestino. Ligado a essa proteína, o ferro é transportado para todas as células que precisam dele para funcionar: as células que compõem as camadas mais externas da pele e do intestino, as células que dão origem aos nossos pelos e cabelos e principalmente para a medula óssea, onde o ferro vai ser fundamental para a produção da hemoglobina, a substância presente em nossos glóbulos vermelhos e que é responsável pelo transporte de oxigênio.

Quando nosso organismo absorve ferro em excesso, mesmo com o uso de ferro por todas essas células citadas acima, ainda sobra muito ferro ligado à transferrina. Nessa situação esse excedente de ferro ligado à transferrina é transportado até o fígado, onde é armazenado dentro da ferritina.

Então se eu tenho a ferritina aumentada, significa que eu tenho excesso de ferro no meu organismo?

Essa talvez seja a maior confusão feita ao interpretar um exame de ferritina aumentada, tanto por médicos quanto por pacientes. A resposta para esta pergunta é não. Uma outra importante função da ferritina é se comportar como uma proteína de fase aguda, ou seja, uma proteína que tem sua produção aumentada em situações de “stress” do organismo, como inflamações, infecções, cânceres e outras doenças. Assim, diversas doenças como: tuberculose, HIV, doenças autoimunes (lúpus eritematose sistêmico, artrite reumatoide, doenças inflamatórias intestinais), hepatites, insuficiência renal e vários tipos de câncer podem levar ao aumento da ferritina. Nessas situações a ferritina está aumentada, mas sem aumento da concentração de ferro no organismo.

A situação mais frequentemente relacionada à elevação da ferritina, porém, é a esteatose hepática (conhecida popularmente como gordura no fígado). A esteatose hepática se divide em dois tipos principais: a alcoólica e a não alcoólica. Naturalmente, como o próprio nome indica, a esteatose hepática alcoólica ocorre naquelas pessoas que ingerem quantidades potencialmente danosas de álcool. Mas o que são quantidades potencialmente danosas de álcool? O CDC (Centers for Disease Control) define com consumo potencialmente danoso de álcool aquele que excede 14 doses/semana para os homens e 7 doses/semana para as mulheres. Para efeitos de comparação, uma lata de cerveja tem uma quantidade de álcool equivalente a 1.4 doses; uma garrafa de vinho o equivalente a 6.4 doses.

A esteatose hepática não alcoólica está mais relacionada à resistência à insulina. Esse não é um tópico da área da hematologia, mas brevemente, para processar os carboidratos da nossa alimentação, nosso organismo precisa de produzir insulina. Quanto mais carboidratos na alimentação de uma pessoa, mais insulina ela produz. Essa produção de insulina em excesso vai tornando o organismo mais tolerante à insulina, ou seja, o organismo precisa produzir doses progressivamente maiores de insulina para processar a mesma quantidade de carboidratos. O problema é que a insulina apresenta outros efeitos sobre o organismo, como o estímulo da produção de gordura a partir dos carboidratos. Um dos principais sítios de acúmulo de gordura no nosso organismo é justamente o fígado.

Portanto, a maioria dos indivíduos que buscam o hematologista para avaliação de aumento da ferritina tem, na verdade, esteatose hepática ou situações metabólicas relacionadas (ou seja, resistência à insulina).

E como saber se a ferritina aumentada é por excesso de ferro ou por outras causas?

A avaliação inicial da causa do aumento da ferritina é simples, e pode ser realizada com a medida do ferro no sangue (ferro sérico) e da capacidade total de ligação do ferro (TIBC). A TIBC é um parâmetro que avalia a quantidade total de ferro que toda a transferrina presente na circulação de uma pessoa consegue transportar.

Desses dois parâmetros (ferro sérico e TIBC) é possível estimar um terceiro, chamado saturação de transferrina, obitdo pela divisão do ferro sérico pelo TIBC. A saturação de transferrina nos informa qual a porcentagem da capacidade de transporte de ferro da transferrina está ocupada num dado momento. Pessoas com saturação baixa da transferrina, tem transferrina suficiente para transportar muito ferro, já pessoas com excesso de ferro já usam a maior parte dessa capacidade de transporte da transferrina, e por isso sua saturação tende a ser alta.

Detectamos um excesso de ferro quando junto com o aumento da ferritina, observamos uma porcentagem muito alta da saturação de transferrina (geralmente acima de 45%). Se, ao contrário, a saturação de transferrina apresenta valores normais (entre 20-45%), mesmo com a ferritina aumentada, não há aumento da quantidade de ferro no organismo.

Valores de saturação da transferrina muito próximas do limite superior da normalidade (por exemplo 50-60%) podem exigir a realização de exames mais sofisticados para a quantificação do ferro no organismo, como a ressonância magnética, que permite estimar a concentração de ferro no fígado e no coração.

Meu médico falou que a minha ferritina é muito alta e que eu preciso de fazer sangrias!

Em primeiro lugar é preciso esclarecer que a ferritina em si não é tóxica para o organismo. O que é tóxico para o organismo é o excesso de ferro, portanto pessoas que apresentam ferritina aumentada, mas não apresentam aumento do ferro no organismo (saturação de transferrina ou ressonância magnética normais) não se beneficiam da realização de sangrias.

As sangrias (procedimento semelhante à doação de sangue) são reservadas para as pessoas que apresentam excesso de ferro no organismo, pois esta é uma situação em que pode haver danos a alguns órgãos, como fígado e baço. Pessoas com a ferritina alta sem concentrações elevadas de ferro no organismo (pessoas com esteatose hepática, por exemplo) não precisam de sangrias, mas sim de medidas que tratem as causas da ferritina elevada, como por exemplo: interromper o consumo de álcool em pessoas com esteatose hepática alcoólica, perda de peso e prática de exercícios físicos em pessoas com esteatose hepática não alcoólica, tratamento cirúrgico/quimioterápico em pacientes com câncer, etc.

E por que não fazemos sangrias nas situações listadas no parágrafo anterior? Toda vez que retiramos sangue do organismo de uma pessoa, o ferro presente naquele volume de sangue também é extraído do organismo. Assim, se uma pessoa com ferritina aumentada e estoques de ferro normais se submete a sangrias, ela vai perder ferro e com o tempo apresentar estoques de ferro reduzidos, que levam à anemia. Na prática, uma das maiores demonstrações de que uma pessoa com ferritina aumentada não precisa de sangria é uma queda muito rápida da ferritina, às vezes até com surgimento de anemia, após algumas sessões de sangria.

E se meus exames indicarem que eu tenho excesso de ferro? Qual doença eu tenho? Hemocromatose?

Se os exames realizados durante a investigação de uma dosagem elevada de ferritina indicarem que há aumento de ferro na circulação sanguínea (saturação de transferrina elevada) esse dado deve ser confirmado por ressonância magnética de fígado e coração, que avalia a concentração de ferro nesses órgãos. Uma vez confirmado o aumento de ferro nesses órgãos, e considerando-se que a pessoa nunca recebeu transfusão de sangue nem reposições de ferro parenteral (pela veia), a hipótese diagnóstica mais provável é a hemocromatose hereditária.

E o que é hemocromatose? Hemocromatose é um conjunto de doenças hereditárias (transmitida geneticamente dos pais para os filhos) em que o organismo perde a capacidade de regular a absorção do ferro, absorvendo-o em excesso. O corpo humano não é capaz de eliminar ferro em excesso, sendo a concentração desse metal no nosso organismo regulada pela absorção, ou seja: controlamos a quantidade de ferro em nosso corpo absorvendo mais ou menos ferro.

Na hemocromatose hereditária, como consequência de diversos defeitos genéticos distintos, uma substância chamada hepcidina, responsável por reduzir a absorção de ferro no intestino quando este já está em concentrações adequadas no nosso organismo, deixa de ser produzida ou passa a ser produzida em quantidades muito pequenas, de maneira que o ferro passa a ser absorvido de maneira descontrolada e constante. Como resultado, o ferro vai se acumulando lentamente, ao longo de muitos anos, se depositando em órgãos vitais, como o fígado, coração, além de glândulas (pâncreas, testículo em homens e ovários em mulheres) e articulações.

Com o passar dos anos, o excesso de ferro nesses órgãos começa a comprometer o seu funcionamento. A pessoa pode então desenvolver cirrose hepática, insuficiência cardíaca, diabetes, dores articulares e outras complicações. Assim, é necessário fazer este diagnóstico antes que ocorram lesões nesses órgãos.

O diagnóstico, como explicado anteriormente, consiste na detecção e confirmação através da ressonância magnética, de excesso de ferro depositado em determinados órgãos, com o fígado e o coração. Existem exames genéticos que investigam a presença de mutações em um dos genes comumente relacionados à hemocromatose hereditária, o gene HFE. Este gene, porém, não é o único envolvido na origem da hemocromatose e a ausência de mutações nesse gene não exclui o diagnóstico de hemocromatose hereditária. Da mesma forma, uma pessoa pode apresentar alguma mutação do gene HFE e não desenvolver hemocromatose hereditária (isso é particularmente comum para as mutações do tipo H63D e S65C). É fundamental, portanto, para o diagnóstico de hemocromatose hereditária, que a pessoa tenha documentação de excesso de ferro no organismo, independente dos resultados dos exames genéticos.

Como mencionado anteriormente o tratamento da hemocromatose hereditária envolve a realização de sangrias terapêuticas. Inicialmente elas devem ocorrer com maior frequência, para remoção do excesso de ferro no sangue. O número de sessões e o tempo que isso demora varia de pessoa pra pessoa. Depois desse momento inicial, realizam-se sangrias de manutenção, com o objetivo de manter a ferritina menor que 100 ng/ml. Essas sangrias também têm frequência variável, mas costumam ser necessárias uma vez por mês ou a cada 3 meses.